Hipermodernidades 16 - Os produtos da escravatura

in #pt7 years ago

Nos anos 20 e 30 do século passado, os grandes armazéns tentavam captar as pequenas burguesias urbanas com espectáculos feéricos na apresentação de novos produtos.

Teatralizava-se a moda no grande palco comercial. As vitrinas eram uma espécie de ecrãs de transparências do real que, da rua, eram vistas como o sonho de desejos legítimos.

Hoje, os grandes espaços, os centros comerciais, são fechados e não têm vitrinas para o exterior. Não há acesso à luz nem ao tempo. Em nenhum desses grandes espaços há relógios. O tempo pára com a luz artificial e com o artifício do acesso fácil a tudo. A oferta excessiva dá-se em pesados blocos de cimento sob uma luz estonteante que não só corta o acesso ao tempo como nos faz perder nele.

O espaço do consumo de modas tornou-se em si mesmo uma moda asfixiante. Por um lado, é uma prisão onde se entra, que faz irradiar uma droga emocional que nos atrai como a mesma potência que uma casa de brinquedos atrai uma criança. Infantiliza-nos. Levam-nos a comprar não o que necessitamos mas o que eles querem vender num apelo insultuoso à emoção infantil que desperta em nós o desejo de ter pelo prazer inconsequente de ter. Eles sabem disso. E manipulam-nos.

Por outro lado, a sua arquitectura com grandes cúpulas que não mostram o céu mas a sua representação parada no tempo e de onde pendem (ou se elevam!) os ícones corporais, surge como uma catedral onde as figurações do desejo são apresentadas como formas santificadas pela sociedade fabricada artificialmente que nos quer impor modelos de beleza como se o próprio tempo não continuasse a sua caminhada inexorável nos trilhos do corpo de cada um. E a cosmética, sem pudor, vende num processo contínuo gato por lebre. E gastam-se fortunas para se ser o que já não se é.

Cada uma destas catedrais tem as suas capelas interiores com os seus respectivos santos e evangelhos que anunciam não uma mas múltiplas modas transacionadas como religiões. E cada uma promete o paraíso que identifique o indivíduo com o deus que representa, fazendo soar hinos e cânticos como se fossem rezas, orações, hossanas, seja através de condimentos popularuchos de produção nacional seja através de importações de outras culturas e etnias.

Capelas tribais que ajudam a identificar ritualisticamente os respectivos grupos socializando-os entre si e afastando-os dos outros. Mas ao contrário do que se passava nos anos 50 do século passado, em que as hordas se digladiavam, estes novos beatos das culturas que as modas impõem ignoram-se entre si, suportando-se. Aceitam-se no ódio latente. Não se frequentam, não se habitam. Cada bando tem o seu altar e cada lugar de culto orienta o gosto dos seus adeptos e crentes.

A origem dos produtos é a mesma. As catedrais multinacionais do consumo não brincam quando se trata de lucro, de grandes lucros, de lucros pornográficos. Então que seja um lucro ecuménico, abrangente e cínico. Da mesma maneira que os artesanatos nacionais são produzidos em falsificações de péssima qualidade e ofensivas da raiz folclórica regional na imensa e despudorada China com acesso barato na sua vastíssima rede de lojas em cada recanto do mundo que o Império do Grande Timoneiro controla à distância com o beneplácito interesseiro e comercial do mentecapto Tio Sam que obrigou o Ocidente a abrir os seus mercados à mediocridade oriental produzida em campos de concentração, de escravatura e morte anónima.

As multinacionais investem na alienação colectiva através de multiprodutos «gadgets» para que o controlo dos seus patrões seja contundente. Enquanto o alienado se apraz com o novo objecto, que traz em si a fragilidade do efémero, não protesta nem luta contra a invasão da sua privacidade e do seu direito à vida e bem-estar.

Cada compra implica a cedência de dados pessoais que constituem grandes bases de informação pessoal que vão circulando entre as multinacionais a alto custo facilitando o bombardeamento constante com produtos acessórios num cerco mortífero que afasta o indivíduo do combate e defesa de uma ética verdadeiramente humana, que aproxime o homem do bem-estar a que tem direito.

Este programa, que foi delineado durante a década de 50 do século passado e que tem no crânio multicéfalo que controla as multinacionais a engrenagem do poder mundial, tem como único objectivo transferir a riqueza produzida no planeta para as mãos de uma ínfima minoria que todos os anos se reúne em hotéis de luxo onde através de sinistros «briefings» constitui e destitui poderes regionais.

E o «capital derrama» como ferro fundido nas sepulturas dos povos que continuam inconscientemente a adorar as suas representações plásticas nas catedrais de consumo.

E se «não há machado que corte a raiz ao pensamento» chegou a hora de pensar, reflectir e agir em defesa do que fomos, do que somos e do que queremos ser.

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Foto: José Lorvão

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Como sempre um ótimo texto. O consumismo nos consome. Sua escrita ao mesmo tempo que é dura aos criticados, vem de um palavreado muito rico e bem elaborado, um uso do português muito refinado. Venho aprendendo bastante ao ler seus textos. Obrigado por compartilhar conosco.

Muito agradeço as suas generosas palavras. Infelizmente o alcance destes textos é residual. Um forte abraço.

Estamos sumidos (e cegos) ante unha inmensa escravidão que posúe o paradigma de facernos sentir libres.
Pode ser que xa legalizaran o "soma" e nos consumiramos sen saber.

Saúde.

Muito agradeço a @gazetagaleguia pela leitura e comentário sobre o meu texto.

Excelente, como sempre. Beijo

Muito obrigado @ginga. Beijo

Olá, seu texto foi sugerido por um usuário e consta na Galeria de Leitura do Projeto Lusofonia. Visite a publicação aqui para a lista completa de textos indicados: [Galeria de Leitura]: Publicações Sugeridas pelos Usuários e pelo Projeto Lusofonia.

Abraços, luz e sucesso!

Muito vos agradeço

Interessante reflexão! Parabéns pelo texto. Pra contribuir: Não estariam esses espaços comerciais sofrendo atualmente uma mutação digital? Como será o "mundo real" futuro das crianças que hoje já nascem com uma conta no FB, Youtube, steemit etc?

Há na realidade mutações no nosso quotidiano que nos fogem à reflexão. Creio que as redes sociais sofrerão igualmente mutações gigantescas. Não está em causa a comunicação entre pessoas, mas sim a comunicação entre humanos e robôs. Pensar o real é contribuir para que o futuro seja menos agressivo. Contudo, estamos no campo das utopias porque o que vivenciamos hoje é a implementação da «guerra eterna» e do desprezo pela vida humana.

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