Para os estudantes de literatura, e não só, “Henriad” é a expressão utilizada para referir um conjunto de peças, da autoria de William Shakespeare, sobre a ascensão do príncipe Harry ao estatuto de rei-guerreiro, imortalizando-se na História como Henry V. Estas peças são ‘Richard II’, ‘Henry IV, Part 1’, ‘Henry IV, Part 2’ e ‘Henry V’, se bem que alguns especialistas apontem algumas peças anteriores como parte integrante desse refogado épico sobre as influências corruptas do poder e a brutalidade da guerra. Apesar de inspiradas em factos, estas peças foram nada mais do que estradas para a criação de uma mitologia trágica e cómica à volta do jovem rei que, agora, é explorado pelo realizador David Michôd.
Está-se no princípio do século XV, no reinado de Henry IV, interpretado por Ben Mendelsohn, conhecido como um rei conflituoso e sanguinário. Um dos seus filhos, Harry, interpretado por Timothée Chalamet, vive longe da corte, afogado em álcool e mulheres, reclusão que o guião, mais que uma vez, associa ao seu pacifismo, ao facto de este se querer afastar das políticas sórdidas do pai. Logo de início, é possível perceber que o realizador australiano pretende fugir da narrativa de Shakespeare, já que o dramaturgo inglês pintou o príncipe como um bon vivant, alguém que queria experimentar os pecados da carne longe dos olhares inquisidores do castelo. Fundamentalmente, é atribuída à personagem principal uma certa pureza de pensamento que, na versão de Shakespeare, não existe, sendo o príncipe um astuto manipulador.
Porém, esta fuga ao material original é substanciada com uma modernização do discurso, opção que pode ser entendida como uma tentativa de elaborar um enredo compreensível para as gerações atuais. Óbvio que este caminho está repleto de armadilhas, pois o filme pode ser facilmente acusado de ter sugado praticamente todo o humor de uma série de peças onde impera uma certa jocosidade. Por exemplo, Sir Falstaff, interpretado por Joel Edgerton, que na peça é uma espécie de bobo introspetivo, é transformado numa figura séria e paternal, apaziguador da consciência do jovem Harry, que, eventualmente, se torna rei.
Depois de um primeiro ato pré-coroação algo desleixado, explorando pobremente as consequências do reinado de Henry IV, o que pode deixar vários espectadores à margem de algumas ramificações políticas, a chegada do novo líder à corte resgata o filme do enfado. Como é de esperar, a tensão começa a crescer face ao convívio do novo rei com os mesmos conselheiros que rodeavam o seu pai: homens poderosos, com variados interesses e ideologias a defender. O novato, claro, tem de navegar por entre estas ondas proditórias, destacando-se a interpretação de Chalamet, que consegue fazer com que, mesmo nos momentos de silêncio, a sua caricatura deste jovem indeciso seja cativante, ressaltando o seu olhar mortiço, mas atento a qualquer sombra que se possa parecer com um ato de traição. Todavia, existem vários capítulos escorregadios em que o filme se cola desesperadamente à presença carismática do ator.
Independentemente da “Chalamet-dependência”, é neste ecossistema bafiento que se podem encontrar várias aproximações ao cenário político das últimas décadas. Conforme vemos este rei primaveril ser devorado pelas engrenagens trevosas que o rodeiam, é relativamente fácil encontrar paralelismos com a administração Bush na forma como Henry V, após várias informações duvidosas, parte à conquista de França. Também podem ser encontrados vestígios de Obama, visto o monarca, apesar do seu intento pacifista e reformista, acabar por pegar na herança bélica deixada pelo seu antecessor.
A nível técnico, este é o melhor trabalho de Michôd até à data. O seu virtuosismo nota-se nas cenas de guerra, já em território francês, graças a um trabalho de câmara e logística inspirado em ‘Game of Thrones’, nomeadamente, em algumas técnicas usadas pelo realizador Miguel Sapochnik. A batalha de Agincourt, que pode ser encontrada em qualquer livro sobre a invasão inglesa, é um exemplar brilhante de como filmar uma cena de combate medieval, enchendo-se o plano de salpicos de lama e sangue, enquanto o tilintar de armaduras em constante colisão se mistura com uma balada cerimoniosa da autoria de Nicholas Britell.
Nesta jornada francesa, de destacar o aparecimento do Dauphin, termo associado ao herdeiro do trono francês, interpretado por Robert Pattinson. Apesar de as suas intervenções serem curtas, esta personagem funciona como alívio cómico numa narrativa excessivamente carrancuda, onde se vão desperdiçando oportunidades de, esporadicamente, apresentar um tom mais ligeiro. Ademais, sempre que a obra se apanha na encruzilhada de demonstrar a seriedade e gravidade das suas personagens, os guionistas, Michôd e Edgerton, optam por introduzir palavrões no diálogo, como se o hodierno “fuck” fosse, nos tempos que correm, suficiente para fazer alguém mais temível ou maquiavélico. Contudo, curiosamente, é de uma das cenas onde jaz um vulgarismo que nasce um momento icónico que poderá grudar-se à mente de quem vir o filme e dos cibernautas prontos a criar o próximo GIF.
Em suma, ‘The King’ é uma agradável surpresa, dentro de um género que já merecia uma abordagem cuidada e relevante como é o caso. Pena que, no processo de amodernarem um conto que já leva séculos de existência, Michôd e companhia tenham exagerado na simplificação de algumas temáticas e personagens, acabando por se extraviar alguma da ambiguidade que eternizou a “Henriad”.