Um mês na aldeia indígena - relato de viagem

in #pt6 years ago (edited)

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Um dia me deu vontade de fazer algo diferente nas minhas férias. Me inscrevi num curso de extensão universitária que tinha o foco em vivência comunitária. Eu e outros estudantes de vários lugares do Brasil (que eu nunca vi na vida) moramos cerca de um mês em uma aldeia indígena (que eu nunca havia ouvido falar) no Nordeste do Brasil. Foi tudo na base do acaso; um dia antes de sair da capital para o interior, as duplas e os seus locais de destino foram sorteados, sem direito a contestação. Então, 24 horas antes de iniciar minha jornada descobri que ia passar o mês em uma aldeia potiguara. O único índio que eu conhecia era o Papa-capim, mas fiquei curiosa em saber como seria a experiência e fui de coração aberto.

A aldeia ficava no fim de uma estrada de terra que descia rumo ao mangue. Era mais uma vila pobre do que uma aldeia indígena propriamente dita, assim como a grande maioria das aldeias brasileiras atualmente. Muitas coisas me surpreenderam e algumas me impactaram de forma definitiva. Algumas delas:

  • A forma de criar e educar as crianças. Ficamos hospedados na escola indígena, e nossos primeiros e principais anfitriões, que foram especialmente presentes e atenciosos em toda a nossa estadia, sempre foram as crianças locais. Elas que nos levaram para conhecer a aldeia, os melhores lugares para passear e brincar. Extremamente independentes, nos ensinaram a encontrar água e alimento quando passávamos o dia em incursões pelo mato. Juro que me serviram até espetinho de camarão com água de côco, tudo fresco e preparado na hora, no meio do mato, do nada. As crianças são livres para ir e vir dentro dos limites de terra da aldeia, e todos se responsabilizam por elas. A parte ruim é que não nos deixavam em paz um segundo sequer, inclusive quando íamos ao boteco tínhamos que pular a janela dos fundos e rezar para que nenhuma nos visse no caminho.
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  • A colaboração, a solidariedade e o sentimento de pertença. Desde que pus os pés na aldeia, ganhei várias avós, mães e primas. Sabe aquele povo que te põe sentado na mesa da cozinha e não te deixa levantar, enquanto conversa e te entope de comida? Todos os dias quando acordávamos, havia pão quente na nossa porta, às vezes peixe fresco também. Nunca sabíamos quem havia deixado. Ficavam bravos se a gente se negava a pegar caranguejos de seus tanques e plantas dos seus herbários. Nos visitavam e levavam sopa quente quando adoecíamos. Costuravam nossas roupas, nos davam presentes. Nos protegiam com suas peixeiras afiadas, montando guarda enquanto dormíamos ou fazíamos passeios por lugares não muito seguros. Nos sentimos muito queridos, cuidados e protegidos.
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  • O hábito de andar. Uma coisa que me marcou profundamente, foi o fato de haver pouquíssimos carros na aldeia. Eram dois ou três, que serviam de táxi para quando alguém precisasse ir à cidade e não pudesse ir à pé (por motivo de doença ou excesso de peso para carregar). Uma espécie de UBER 1,99. Fora essas situações, tudo que íamos fazer era a pé, ouvindo os pássaros e o farfalhar das folhas. Um hábito que eu nunca mais abandonei. Hoje em dia a minha trilha é na selva de concreto, mas nada que um fone no ouvido não resolva.
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  • A cultura local. Claro que era um híbrido de elementos indígenas e "europeus". O toré (a dança indígena local) reunia semanalmente toda a aldeia para dançar, cantar e brincar. Crianças e idosos, homens e mulheres. Mensalmente a brincadeira ia a um outro patamar, quando se reuniam várias aldeias para o mesmo ritual, que era puxado pelos pajés com suas maracas em punho.
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    Tinham também esse momento semanal que chamavam de assembléia de moradores. Todos os adultos se reuniam sob a liderança do cacique, para discutir e votar as pautas de seus interesses. O voto da maioria era sempre a palavra final. Uma espécie de democracia direta, onde cada um falava e votava por si, sem a mediação de representantes. Também adoravam ao Deus e aos santos católicos, faziam procissões e assistiam à missa no domingo.

  • Balada de aniversário. Um dia fomos convidados para o aniversário do cacique. Seria num domingo, em local reservado e para poucos convidados. Acordamos cedo e entramos na embarcação, achando que íamos parar em algum banquete com outros caciques, pajés e pessoas importantes.
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    Na verdade a gente só bebeu pinga com caju (que a gente mantinha longe do sol enterrando a garrafa na areia), comeu caranguejo assado na fogueira de chão, e dançou toré numa pequena ilha de areia no meio do rio. O cacique, rodeado de seus melhores amigos, dançou e brincou como criança, e por um dia pôde esquecer toda a tensão do conflito de terra que havia ferido e matado alguns dos seus homens nos últimos anos. Ele mesmo já havia sido vítima de uma tentativa de emboscada, e estava visivelmente feliz de poder celebrar mais um ano de vida apesar dos pesares.

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Ao todo foram 3 pequenas embarcações levando familiares e amigos para a festa do cacique. Foi da hora esse rolê.

  • O ritual espiritual. Apesar do sincretismo com o cristianismo, alguns elementos da sua fé original são muito marcantes, como o respeito e a reverência aos antepassados. Principalmente aos espíritos dos grandes guerreiros, que são como os nossos anjos da guarda, protegendo e olhando por todos a todo momento.
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    "Vitória da Terra" e "Vitória de Todos Juntos", foi o que o pajé desenhou em mim depois do ritual, quando eu contei que havia sonhado que estava em cima de um morro, contemplando a paisagem."Você sonhou com Monte-Mor (reserva indígena onde ficam várias aldeias, inclusive a que eu estava), que significa Monte Maior. E o maior monte que você pode subir é o do amor. Quando você sobe o monte do amor, a vitória não é só sua. A vitória é de todos".

Achei meio miguelento mas achei bonito também. No fim das contas essa viagem com certeza me influenciou muito na direção do minimalismo, mas isso fica para um outro post.

E vocês, qual foi a viagem mais pirada que já fizeram?

Sort:  

Muito bacana! Parabéns, experiências que restam para sempre!
Grande abraço e sucesso!

@aliny, Parabéns! O teu post foi votado e resteem pelo Projeto Camões!

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PROJETO CAMÕES -Língua Portuguesa no Steemit!

Que aventura @aliny, com certeza foi um grande privilégio, obrigado por compartilhar sua experiência conosco!!!

Oi @herisson , obrigada você pela visita aqui no blog!

Muito bom. Pretendo fazer um documentário fotográfico em breve com uma tribo de índios que fica na cidade de Pesqueira, aqui em Pernambuco (Xucuru), numa região serrana com mais de 1.000 m de altitude. Será com certeza tbm uma experiência no mínimo, interessante. 😉 Bom domingo pra vc!

Nossa, @jsantana! Que projeto bacana, esse eu quero ver. Essa aldeia do relato é da Paraíba. Obrigada por ter lido, tenha uma ótima semana!

Boa, @aliny! Que experiência incrível, também já estive em uma aldeia no Tocantins e foi a viagem mais inesquecível que já vivi. Vale muito a pena conhecer outras culturas, até para respeitá-las melhor, obrigado por compartilhar ;)

Oi @casagrande, que legal que a sua viagem mais louca foi para uma aldeia também rs. Qual era etnia deles? Realmente eu aprendi muito nessa experiência, inclusive a ser menos preconceituosa. Obrigada por ter lido, tenha uma ótima semana!

Ah sim, passei uma semana acampado em uma aldeia da tribo karajás, na Ilha do Bananal, onde passa o rio Araguaia, entre o Mato Grosso e Tocantins, mas pelo tanto que aprendei parece que passei muito mais tempo lá ;)

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