Sinopse: O solitário Andrew (Miles Teller) é um jovem baterista que sonha em ser o melhor de sua geração e marcar seu nome na música americana como fez Buddy Rich, seu maior ídolo na bateria. Após chamar a atenção do reverenciado e impiedoso mestre do jazz Terence Fletcher (J. K. Simmons), Andrew entra para a orquestra principal do conservatório de Shaffer, a melhor escola de música dos Estados Unidos. Entretanto, a convivência com o abusivo maestro fará Andrew transformar seu sonho em obsessão, fazendo de tudo para chegar a um novo nível como músico, mesmo que isso coloque em risco seus relacionamentos com sua namorada e sua saúde física e mental.
Intenso. Se há uma palavra em nosso extenso vocabulário que, julgo eu, sirva perfeitamente para definir Whiplash, essa é a palavra: Intenso. Rolavam os créditos e minha respiração seguia tão ofegante quanto meus batimentos seguiam acelerados. E mesmo depois de longos minutos após o seu fim, a experiência que tive com Whiplash ainda me arrancava as mais profundas lufadas de ar, tamanha fora a satisfação que tive em assistir a esse filme. Foi uma experiência indescritível! Whiplash nos presenteia de diversas formas: desde suas atuações – onde somos surpreendidos por um Miles Teller extremamente inspirado e mostrando que pode alcançar patamares bem maiores do que aparenta, e um J. K. Simmons na, até aqui, melhor e mais visceral atuação de sua carreira – passando por toda a construção dos conflitos, pelo modo como a foto, adequando-se em determinados cenários, tenta transmitir toda a sensação de sufoco e tensão, o incrível e dinâmico jogo de câmeras utilizado em algumas cenas, e, claro, sua trilha sonora. Há uma somatória ímpar entre os elementos desse filme e foi justamente isso que, a meu ver, deu a Whiplash esse ar de intensidade. Característica essa que, embora não muito rara e distinta, é apresentada aqui com a mesma competência das grandes Big Bands dos anos 30-40, e seus dançantes Swings.
Há, de fato, um cenário bastante saturado no enredo apresentado pelo longa de Damien Chazelle. Em suas primeiras impressões, a trama se mostra bem simples; é basicamente a história de um jovem com um sonho e que encontra, no caminho, um mentor “barra pesada”, que põe em cheque todas as suas capacidades e almejos. E, sejamos francos, é verdade que essa fração do argumento do filme não soa tão inovadora quanto seria de se imaginar – aliás, nem mesmo o restante do argumento, versando sobre a busca pela perfeição e seus desatinos, é tão inovador assim. Isso, precisamente, acaba soando estranho, já que o filme obteve ótimos retornos, tanto por parte do público quanto pela crítica especializada. Felizmente, clichês e repaginações argumentativas não são naturalmente presos a seus próprios prolemas; é sempre possível ludibriar essas armadilhas: a depender do modo com que determinado filme é conduzido, incluindo nisto o modo como seus elementos são dinamizados, uma trama clichê pode se transformar numa trama absolutamente diferente do que aparentava aquele velho lugar-comum enredesco ou textual. E é justamente isso que acontece aqui, em Whiplash.
A direção forte e segura que Damien Chazelle dá ao texto de Whiplash, favorecem de maneira ímpar não apenas o desenvolvimento de toda a história, mas garantem, acima de tudo, duas coisas basais ao filme: o desenvolvimento quase milimétrico de seu personagem principal e a assertividade de suas críticas. Dificilmente você encontrará alguém que, em algum momento da projeção, não tenha odiado o Fletcher, que não tenha se sentido aflito com a forma como Andrew agia, cada vez mais obsessivo, ou que, depois de seu magnífico e vibrante final, não tenha dedicado alguns minutos de seu tempo para refletir sobre as nuances que o filme apresenta. Isso tudo, se deve ao trabalho primoroso do jovem Damien Chazelle, que, aqui, angaria o reconhecimento que não conseguiu com seus trabalhos anteriores, como roteirista. Aliás, me soou muito curiosa e irônica essa inversão de jogo na carreira de Chazelle. Quem, em alguma suposição qualquer, seria capaz de imaginar que a pessoa que roteirizou o péssimo O Último Exorcismo – Parte 2 (2013) e o mediano Toque de Mestre (2013) seria a mesma a realizar o filme vencedor do Festival de Sundance 2014? Acredito que nem mesmo o mais experiente especialista em probabilidades, calculando-a, chegaria a essa conclusão. Em determinado momento, enquanto conversa com seu (então) ex-pupilo, Fletcher diz: “Não existem duas palavras mais danosas na língua inglesa do que ‘bom trabalho’”, e eu torço para que Chazelle siga o conselho de seu personagem, não se acomode e mantenha o nível em suas próximas produções, a despeito dos vários “bom trabalho!” que ele certamente anda escutando por aí.
Sangue e suor brotam da tela em Whiplash, e tudo isso, em busca da perfeição. O subtítulo brasileiro já deixa claro – e bem mastigadinho –, à que o filme veio. Contudo, reflitamos por um momento: do que se trata essa tal de perfeição? Como é possível alcançá-la? Ou melhor: é possível alcançá-la? Afinal de contas, que preços são pagos na busca por obtê-la? Whiplash mergulha justamente nesses questionamentos, e nos leva junto. As nuances da obsessão e suas consequências, a ambição, a forma como certas relações são por ela afetadas, a fragilidade do ser humano quando diante de seus próprios limites, etc. A tal busca pela perfeição, desde Cisne Negro (2010), encontra em Whiplash um de seus retratos mais fidedignos. Se viermos e conviermos, pode ser que concordemos que Andrew e Fletcher, imersos em seus conflitos e aparentes diferenças, nada mais são do que lados opostos da mesma moeda. Cara, o aluno, ávido por seu sonho e disposto a alcançá-lo a todo e qualquer custo; coroa, o mestre, que tem fome pela perfeição e que, por ela, é capaz de arrancar até os últimos sopros de sanidade de seus pupilos – alojando-se, aqui, uma crítica aos mentores que submetem seus alunos a situações degradantes e de extrema pressão, para obterem o talento e o resultado desejados.¹ Mas, além das obviedades, o que difere um do outro? O que torna a ambição dos dois tão distinta? Não são perguntas fáceis de serem respondidas, mas, se me é permitido fazer proveito da subjetividade das interpretações aqui, gosto de acreditar que ambos, dentro desse panorama, não são lá tão diferentes quanto se supõe, mas sim complementares. Andrew e Fletcher, de maneira bastante subversiva e, claro, controversa, são indivíduos que se complementam: assumem, mutuamente, um papel na vida do outro, fazendo disso seus grandes propulsores na busca pela tão almejada perfeição.
Mas, e aí, será que toda a obsessão de Andrew e a sandice de Fletcher conseguiram bater a tal da meta? O final de Whiplash, um dos mais bem executados em muito tempo, pode servir como resposta, ou como sugestão, à essa pergunta. Mas, antes de irmos até essa via de fato, é preciso regredir até dois pontos em específico. O primeiro deles, um dos momentos mais marcantes do filme, é a sequência do barzinho, onde Andrew, já desiludido, afastado das baquetas, vai assistir a um show onde Fletcher, também afastado de sua ocupação no Conservatório Shaffer, era convidado. Tudo beleza, Fletcher mandando bem, aquele climinha de agitação dos bares, e tal… Aí Fletcher vê Andrew e o convida pra bater um lero. Beleza, sem treta. Com os ânimos já não tão acirrados quanto antes, o papo flui numa boa, até que Fletcher, ao terminar de contar a famosa história de “como Charlie Parker se tornou Charlie Parker”,² solta aquela que ficaria conhecida como a frase definidora de Whiplash (e que você já leu, alguns parágrafos acima): “Não existem duas palavras mais danosas na língua inglesa do que ‘bom trabalho’”. Ponto. Ótimo. Guardem isso. Vamos seguindo. O segundo ponto é aquele logo depois de Andrew ser ridicularizado por Fletcher em público, na presença de dezenas de críticos e grandes figurões do cenário, logo antes do grand finale, onde Andrew se retira do palco, todo choroso, envergonhado e encontra seu pai, que lhe dá um caloroso abraço consolador, o chama para casa e... Andrew resolve voltar, por cima do mesmo rastro! Ponto. Guarde isso. Agora, vamos conversar.
Exatamente nesse momento me veio um insight em forma de porrada no cérebro. Por isso, tive de me acautelar ao tentar encontrar os porquês que levaram Andrew a voltar para o palco. Matutei cá com os meus botões e me questionei se o abraço de Jim, o pai de Andrew, teria sido um simples abraço como outro abraço qualquer que se dá em alguém fragilizado, sem qualquer ~consolação falada~, sabe? Vi, revi a cena e por um longo momento me pus a perguntar se, na longuidão daquele afago, algo havia sido dito a Andrew, inaudível, entre aquela simples alternância de planos, que sai das costas de Andrew e pula para as costas de Jim – e com a trilha sonora aumentando um tiquinho. Pois bem… Me permitindo supor que algo foi, sim, dito a Andrew, chuto que essa coisa dita por Jim talvez tenha sido o tão danoso “bom trabalho” – com um medinho, confesso, de que isso soe como um delírio de quem fica procurando pelo em ovo. Mas, nos ponhamos a refletir um pouco: se somos levados, por livre e espontânea vontade, a aceitar a ode contra “bons trabalhos” de Fletcher como algo minimamente coerente, correto, e que aceitamos como verdadeiro, não é tão difícil assim imaginar Andrew assumindo-se como um “contrassenso” disso, agindo justamente em desconformidade ao senso (agora) comum, após seu pai tentar lhe consolar falando justamente aquilo que seu mestre condenava. Seria aí, caso minha hipótese fosse verdadeira, que Andrew terminaria de lapidar, enfim, a sua figura do outro lado da moeda.
Entretanto, optei por deixar essa hipótese um pouco de lado e partir pra uma visão mais factual acerca das motivações de Andrew em voltar ao palco. Essa outra perspectiva o coloca numa posição um tanto ambígua: onde ele sai de sua posição de passividade diante de Fletcher e passa a ser um agente ativo, num paralelo direto à história de Charlie Parker. Sendo assim, o que Andrew faz é apenas repetir o que fez Charlie Parker no início de sua carreira como saxofonista: aceitando as humilhações e encontrando naquilo forças pra seguir adiante, sem as amortizações dos bons trabalhos e concebendo o papel de seu algoz na sua formação. Bom… Seja lá qual for a visão que você escolheu, ou que você desenvolveu, leitor – seja vendo Andrew como um transgressor do senso estabelecido por seu mestre, ou como um obstinado músico que aceita o fardo de ter que sofrer pra alcançar a perfeição –, uma coisa é certa: num futuro talvez próximo dali, depois daquela explosiva apresentação, Andrew certamente teria pessoas falando sobre ele nas mais cotidianas situações do dia-a-dia, mesmo que, pra isso, tivesse de morrer falido, bêbado e drogado aos 34 anos. Andrew não seria só mais um reles bem sucedido e desconhecido vivente do mundo; ele conseguira, enfim, alcançar a sua perfeição – e Fletcher, a sua tão esperada satisfação.³
Whiplash não chega a ser exatamente uma homenagem à Música Popular Americana, já que se foca exclusivamente no Jazz, e, debruçado sobre esse gênero, frisa sempre que possível a importância que algumas figuras desse cenário exerceram na música. Imagino, a propósito, que não tenha sido mera coincidência o nome do personagem de J. K. Simmons ser Terence Fletcher, dado que nos anos 30, na ascensão da Big Band Era, um de seus grandes precursores se chamava Fletcher Henderson. E nada, absolutamente nada, me tira da cabeça que há uma relação referencial entre esses dois. Bom… Sendo coincidência ou não, sem mais delongas e sem margem para qualquer dúvida, Whiplash se consagra não apenas como uma das melhores e mais fortes obras cinematográficas de 2014, mas também como um dos trabalhos que mais merecem destaque dentro de seu gênero e temática. Tim-tim por tim-tim, vale a pena cada minuto.
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[1]: Ponto curioso relacionado às críticas negativas ao filme: uma camada mais erudita do meio jazzista franziu o senho com o fato de o filme retratar a relação abusiva que Fletcher, um maestro de Jazz de renome, tinha com seus alunos. Tal crítica até seria pertinente, não fosse o fato do filme ser baseado, pasmem!, em fatos. Toda a trajetória que vimos em Whiplash foi baseada na época em que Chazelle, o diretor do filme, era baterista de Jazz. Em entrevista concedida no Festival de Sundance, no ano de lançamento do filme, Damien Chazelle abriu o jogo e falou a respeito disso, ao lado de Miles Teller e J.K. Simmons, dizendo que não tinha certeza se obteria sucesso em conseguir uma conexão com o público, já que a história era muito particular à ele e às coisas pelas quais passou como baterista de Jazz.
[2]: A história de Charlie Parker contada por Fletcher no filme não é totalmente verdadeira. Ela foi deliberadamente alterada por Chazelle para ser pertinente à história do filme. Em momento algum de sua vida, Charlie Parker teve um prato atirado contra a cabeça por Jo Jones. De acordo várias biografias, na verdade Jones se irritou não com um erro, mas com as liberdades tomadas por Parker, que não seguia à risca a estrutura da música em uma jam session em 1936. Foi então que Jones atirou um prato, não na cabeça, mas perto dos pés do saxofonista.
[3]: Tanto quanto a expressão de Jim Neiman impressionado, boquiaberto, assistindo a apresentação homérica de seu filho, o que me arrepiou também foi aquele sorriso de Fletcher logo ao final. Cara...
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Esse texto foi publicado originalmente no site CINECOMTEXTO.
Por Ericson Miguel.
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