O Conto da Orbe | Episódio 5 | Vésper do Sul — “Uma ária antiga”

in GEMS4 years ago (edited)


 

Vésper, sempre que podia, ia até à aldeia a casa de Mentesúfis e rondava a sua biblioteca, devorando livro após livro, como uma abelha que recolhe pólen para o seu precioso mel. Gui, o filho do velho, começara a namorar Sara, filha de Mentesúfis. Assim, Vésper fazia de mensageiro dos dois, uma vez que se viam pouco dada a azáfama que reinava no estaleiro da praia — onde Guilherme, Gui e os quatro silenciosos mas sorridentes prestáveis haviam mergulhado, martelando, raspando, suando e vociferando. Por vezes podia ouvir-se a voz de Gui, grave e manchada pelo ar salgado, tentando reproduzir uma ária antiga, logo seguida por risadas dos outros quatro homens que aplaudiam, e da voz disciplinadora do velho mandando que se concentrassem no trabalho. Apesar dos seus esforços manhosos para satisfazer a curiosidade sobre o que estariam a construir com tanto secretismo, estes insistiam em manter Vésper afastado do estaleiro.

— Trata-se provavelmente de uma encomenda especial de algum armador. Diz-se que os das Escarpas impõem a condição de serem eles os primeiros a ver as embarcações, à excepção de quem as constrói, claro! — dizia Mentesúfis num tom apaziguador, vendo a curiosidade de Vésper transformar-se lentamente em obsessão.

— Talvez, mas, Mestre Mentesúfis, aqueles seis andam naquilo há já três meses; se não fosse a sua generosidade em me deixar viver praticamente na biblioteca… É que, além de ostracizado, passam-se dias inteiros que nem os vejo. Chegam a comer dentro do estaleiro… Ora, a ideia era eu aprender com eles, e em vez disso… — Vésper pôs um ar acabrunhado. — Estimo muito a companhia de Sara. É uma boa amiga, já para não falar do Mestre, por quem sinto a maior estima e gratidão, e cuja amizade é um privilégio; e os livros têm sido uma paixão insaciável… — Interrompeu-se e baixou a cabeça. Mentesúfis levantou-se e foi em direcção a um dos armários de madeira negra trabalhada; de lá tirou um embrulho e estendeu-lho.

— Chegou hoje cedo, é para ti. — Vésper retirou o envelope que vinha agarrado e começou a ler em silêncio, enquanto Mentesúfis enchia dois pequenos copos de vidro com um moscatel de seu próprio fabrico, resultado de uma vinha cuja casta era um dos seus orgulhos, plantada por seu pai no ano em que ali chegara, trazida de terras distantes lá para os lados de Pan. Pousou um dos copos à beira de Vésper e, com o outro na mão, sentou-se à sua frente beberricando. Observou o jovem e a sua expressão enquanto lia. Este levantou os olhos e o seu semblante já não era triste.

— São palavras de Pan! — Estava feliz e mais leve, como um céu cinzento que se inunda de luz até não haver mais nuvens.

— A julgar pela tua transformação são boas novas. Bebamos a isso. — Voltou a encher o seu copo. Vésper esticou o braço, e os dois brindaram. De seguida abriu o pacote e de lá tirou um pequeno quadro onde se podia ver Aira, sua mãe, Vésper ao colo de Dérop, seu pai, sentados num banco de mármore; atrás deles, parte do jardim de água com a Orbe branca e, mais abaixo, de lado num canteiro, a sua pequena florescente ‘alma Vésper’. Esta pintura levada a cabo por D’Ouro registava o dia em que Vésper completara sete anos — claro que a obra terá demorado mais uns dias a ficar pronta, e foi durante esse período, sempre que pousavam para o retrato, que o então pequeno Vésper começou a revelar as suas peculiares aptidões para ver e ouvir o que, aparentemente, mais ninguém conseguia. «Foram várias as vezes em que o petiz saltou inopino do colo do pai para o chão, perturbando a concentração de D’Ouro Virtuoso, para desaparecer por entre as árvores e os cursos de água, falando e gesticulando como se estivesse acompanhado de outras crianças, pelo menos assim parecia… voltando depois em passo de passeio, cabisbaixo, e muito só. No último dia, quando D’Ouro já só dava os retoques finais e não necessitava mais dos modelos, Vésper aproximou-se do artista e este anunciou-lhe, triunfante: «Acabei! Vem cá, infante, e diz-me se gostas.» Segurando o pincel na boca, pegou no pequeno sentando-o na perna; Vésper olhou para o quadro, depois para o lado onde parecia estar nada, de seguida para o pintor e disse: «Esqueceste-te de pintar os meus amigos e eles estão tristes por isso!» D’Ouro abriu a boca deixando cair o pincel, sem saber o que dizer.»

— É uma bela pintura! — disse Mentesúfis sorrindo. — Tem virtude esse D’Ouro Virtuoso! — O jovem assentiu molhando os lábios com o néctar, e, num curto silêncio, pôde saborear aquele fragmento da sua infância.

Vésper saiu de casa de Mentesúfis já tardava, o sol tocava o mar tingindo-o de azuis negros e vermelhos, a luz e a brisa eram quentes. Decidiu sentar-se na areia olhando o horizonte. Antes que a noite se abatesse sobre ele, voltou a ler as palavras de Pan; a epístola que seus pais lhe escreveram dizia assim:

«É no pensamento que se percorre a distância incongruente, que acaba antes de começar
É no pensamento que se alimenta e aninha o animal que nunca há-de ser gente!
É no pensamento que não fugimos nem escondemos o que na vida não é seguro
Antes da vida o pensamento,
E nele tudo, até a vida para lá do ‘Muro’ que a precede.
É no pensamento que a mente vagueia e nos orienta, ao sabor dos ventos Bóreas e Austro,
Nele se engendra a nave mais célere levando-nos até ti.
É no pensamento, no periélio dos nossos sonhos, que o almejado reencontro se ilumina… até que aconteça realmente no fim da viagem, na Orbe branca.

Querido filho, agora também Vésper do Sul, recebemos notícias de Petra. A jovem Gaia virá visitar-nos em data que ficará dependente do teu regresso. Entrega saudades nossas aos amigos insulares.
Sempre a pensar em ti, sem ninguém acima de ti.
»


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A seguir…

O Conto da Orbe | Episódio 6
Vésper do Sul — “As cores da aurora”

Nem tudo é o que parece. A paciência é sempre recompensada… se soubermos como preencher o tempo de espera.


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