O Conto da Orbe | Episódio 4 | Vésper do Sul — “Espaço para renascer”

in GEMS4 years ago (edited)


 

A aldeia piscatória da ilha de Nana tinha crescido desordenada e encavalitada ao longo do canal, como quem espreita em bicos de pés para ver o mar. A dada altura, o canal segue sozinho com os seus dois molhes valentes como um par de braços de pedra estendendo-se pelo mar adentro, detendo as águas por vezes mal-humoradas, garantindo a segurança das casas que ficam para trás como ânsias petrificadas. Nas famílias que nelas habitam os homens são na sua maioria pescadores, alguns comerciantes e ferreiros. Havia um fisicista-boticário-dentista que tinha herdado a sabedoria de seus falecidos pais, pessoas ilustres oriundas de uma região da velha Pan que, com o nascimento do seu primeiro e único filho, e não concordando com as orientações políticas da sua terra, teriam decidido viajar para o Sul, encontrando nesta ilha e na sua pequena aldeia o que eles chamavam «espaço para renascer».

Além dos seus conhecimentos científicos de enorme valor, Mentesúfis, agora grisalho, desenvolvera muito cedo um amor especial pelos livros antigos, transformando a sua casa numa biblioteca única com obras de todo o mundo, muitas delas trazidas gentilmente por pescadores nas suas longas viagens como forma de pagamento, ou simplesmente gratidão pelos serviços que ele prestara, prática tornada tradição.

As mulheres eram tratadas com desvelo enquanto meninas; atingindo a idade casadoira, eram cortejadas respeitosamente, cabendo a si mesmas a aprovação dos pretendentes. Tudo era motivo para festas, mas a maior celebração era sempre que se dava um nascimento, já que muitos daqueles homens encontravam sepultura no mar.

Os meninos tinham infâncias auspiciosas acabando na sua maioria no fim da adolescência, endurecidos com as pancadas das ondas. Havia muito que esta gente tomara consciência do «quão importante é o tempo que se tem de vida, sem se saber quanto tempo se tem», dito antigo da aldeia, feito regra. Assim sendo, viviam destemidos o melhor que sabiam, recebendo digna e simplesmente a visita da morte. Mas nunca o sofrimento, a esse davam-lhe luta, e era muitas vezes neste cenário que a sapiência de Mentesúfis se tornava a sua maior aliada. Este terá trazido muitos à luz, ajudado alguns a morrer sem agonia e outros, ter-se-á limitado a segurar-lhes na mão, assistindo impotente a sofrimentos atrozes. Terão sido estas algumas das suas pancadas das ondas, no seu mar feito vida.

Na praia, bastante afastada da aldeia, vivia Guilherme, o carpinteiro, carinhosamente tratado por ‘Gui’, rapaz feito com os seus vinte e poucos anos. Tinha a personalidade caracterizada pelo seu nome, pois, como uma plaina, ao detectar falhas nas pessoas, não descansava enquanto não as limasse, singularidade que herdara de seu pai. Bom coração, era algo maniqueísta, um pouco demais para o gosto do seu amigo vizinho da pequena casa ao lado. Vésper percebia-o, e às suas razões de ser, mas, movido pela sua adolescência e espírito inquisidor próprio de um aprendiz, não lhe dava tréguas. Gui costumava virar-lhe as costas irritado, barafustando dizendo-lhe: «És impossível, nada te basta. Fazes perguntas, respondo-te como sei e posso, argumentas, concordo ou não mas mesmo assim queres mais, e eu mais não sei que te diga. És um cansaço, e eu vou mas é dormir, e tu devias fazer o mesmo!» E terminava batendo ruidosamente a porta de sua casa, continuando a resmungar. As duas habitações geminadas eram modestas e as paredes finas, de modo que Vésper podia continuar a ouvi-lo, e sorria, pensando em como aquela amizade lhe era preciosa.

Havia passado um ano desde que ele chegara àquela ilha sozinho com um malão de madeira maior que ele próprio, a arrastar pelo chão. Trazia consigo uma carta, no envelope podia ler-se: «de Dérop e Aira para Guilherme». Quando perguntou na aldeia, todos sabiam de quem se tratava e lá lhe indicaram a direcção para a casa da praia. Foram muito gentis, e quatro deles ofereceram-se para carregar o malão; sem proferirem uma palavra, pegaram no peso bruto, todos sorridentes, e puseram-se a caminho, fazendo-lhe gestos para que os seguisse. Vésper ficou grato, pois a areia era tão fina que lhe teria sido impossível dar um passo. Finalmente chegaram, e os homens afastaram-se rindo, bem-dispostos, acenando um «até depois», Vésper retribuiu e, de costas para a casa, o seu olhar desviou-se dos indivíduos e deslizou para o mar que o trouxera até ali, atraído pelo seu ondular suave. Já começava a perder-se quando sentiu que era observado, voltou-se… ninguém. Sentou-se no malão, e esperou…

— Ao que vens?

Vésper desequilibrou-se, e quase caiu; mesmo atrás de si este velho era enorme, os cabelos como algodão, as faces escurecidas pelo sol, os olhos reflectiam a cor da água, ora verde ora azul, ora nada. Vésper levantou-se, e, tentando refazer-se do susto, começou hesitante:

— Sou…

— Sei quem és. Ao que vens? — insistiu o outro.

Vésper usou a perspicácia paquidérmica típica dos muito jovens:

— Com todo o respeito, se sabe quem sou, decerto saberá ao que venho!

— Sei quem és, porque tens os traços dos teus pais limados na face, porém, e contudo, até já sei ao que vens: para que te lime as pequenas farpas da tua pessoa. Caso contrário, com a idade, de farpas passarão a verdadeiras estacas afiadas, que só a ti prejudicarão… e o amor que aqueles dois têm por ti não o permite. — E mais baixinho rezou: — … Nem o que o futuro te reserva.

Vésper não conseguiu ouvir o sussurro. O velho, sem desviar os olhos dele, apresentou-se fazendo um pequeno gesto com a cabeça:

— Guilherme…

O jovem pediu desculpa, e respeitosamente estendeu-lhe a carta, que o outro abriu.

Do seu interior tirou duas pétalas de rosa, uma branca, outra vermelha e, escritas na folha de papel amarelecido, as palavras: «Eternamente, querido amigo, gratos.» Voltou a fixar o jovem, e disse-lhe:

— Está limada a primeira farpa! Apesar de, no início, serem todas inocentes como birras de crianças de mama!

Os seus olhos iluminaram-se como uma rebentação no mar, reflectindo os seus tons. E, bem-humorado, agarrou no ombro de Vésper e desabafou:

— Sinto-me como no dia em que nasceu o meu filho, é uma honra receber-te na nossa família.

O jovem ia para agradecer humildemente quando foi interrompido pelo velho, que lhe disse num tom mais baixo:

— Não é preciso, sei o que sentes. Tu és bom menino, vai ser fácil crescer contigo. Fácil e enriquecedor. A herança que trazes no sangue já te dá um grande avanço! Anda, vem daí, deves ter fome.

E os dois encetaram uma relação única, ao mesmo tempo gozando da companhia jovial e divertida do filho do velho, seu homónimo, tal como os seus avôs, todos carpinteiros e filósofos empíricos, que ao fim de tantas gerações já tinham uma filosofia própria. Construíam as melhores embarcações da ilha de Nana, também há já várias gerações, sendo respeitados e prezados por todos.


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A seguir…

O Conto da Orbe | Episódio 5
Vésper do Sul — “Uma ária antiga”

Vésper sente-se algo ostracizado. Desabafa com Mentesúfis. É tomado por reminiscências da sua infância.


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